quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O dia em que matei Buda - Conto




Ato 1 – Sol Poente

  A montanha Nantai amanheceu aquecida pelo sol da primavera; iluminando flores e frutos de cerejeira que brotavam por toda a ilha japonesa. Naquela manhã em especial, a mamãe corvo chocava seus filhotes. Era a primeira vez em sua vida de corvo que ela executava essa maravilhosa tarefa.
  O corvo macho, por sua vez, fora caçar alimento para suas crias no meio da montanha. Suas asas negras brilhavam com o sol quente, mas o corvo não encontrava nada. Naquele dia de azar, o corvo macho sobrevoa a montanha e só retorna quando encontra alimento; isto é, só retorna ao entardecer, quando o sol já começa a se esconder. Uma surpresa desagradável espera o corvo macho no ninho. Talvez, por ter demorado muito, algum outro animal veio e se alimentou de sua amante e de suas crias, pois não havia ninguém lá; mas o corvo macho estava enganado, havia sim. Uma de suas crias havia se chocado. Só havia ela lá, no meio de cascas vazias; e o mais interessante, um mero detalhe que o corvo macho notara, era que sua cria apresentara uma pata extra, no meio das outras duas. Era, portanto, um sinal de profecia, um sinal de que o antigo mito do corvo de três patas – Yatagarasu – havia encarnado.
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  O sino do acampamento improvisado soara três vezes. O suficiente para fazer despertar do sono dezenas de jovens guerreiro-samurai. Eles sabiam que aquele domingo era um dia importante, então logo cedo a animação no acampamento era grande. Muitos lustravam suas armaduras e afiavam suas katanas, mesmo sabendo que a luta seria com armas de madeira. Os cochichos de quem seria o escolhido era bastante presente; não havia nenhum jovem samurai que não tivesse a curiosidade de saber de antemão quem seria o novo Xogum. Embora houvesse alguns nomes prováveis para a escolha, todos concordavam que apenas um era bom o suficiente pra ser eleito. O favorito era Hokori.

  Hokori era um homem feito. No auge dos seus trinta e cinco anos, bastante habilidoso com a katana e maduro o suficiente para liderar uma nação. Nunca se casara, nem se tinha notícias de sua família; tudo que sabiam dele era que o homem dedicara sua vida à arte samurai. E ninguém jamais vira Hokori se ferir em uma batalha, o homem era verdadeiramente invencível.
  Acordara cedo, antes do sol nascer. Preparara o seu chá, afivelara sua sandália, partira para a cabana do chefe e lá ficou de prontidão. Os que passavam por ele no caminho acabaram desejando boa sorte, mas Hokori não os respondia; sempre mantendo o queixo para o alto, o olhar fixo no caminho. As únicas palavras que trocara fora com o general da brigada; foi um simples ‘bom dia’, o suficiente pra fazer Hokori se sentir satisfeito.

  E lá ficou ele, plantado em frente à entrada da cabana do chefe. Ficou durante horas, esperando ansiosamente, até que uma pequena comitiva sai de dentro da cabana, seguido pelo próprio chefe da brigada – um homem grande e barbudo.
  Hokori fez o que pode pra se compor. Ajeitou a postura e engoliu o cuspe, engrossou a voz e disse um belo ‘bom dia, chefe’, mas seus esforços foram todos em vão. O chefe passara por ele sem o ver; suas palavras matinais voaram para o nada, como uma borboleta perdida. Aquilo fez Hokori se ofender facilmente. Não era possível que ele ficara ali, plantado durante todo aquele tempo para o chefe simplesmente o ignorar por completo.
  Decidido, Hokori seguiu o chefe pelo acampamento. O chefe, por sua vez, ia de cabana em cabana cumprimentando cada guerreiro-samurai pessoalmente, desejando sorte a todos. Por fim, Hokori finalmente consegue sua audiência – depois de quase pular na frente do chefe.

- Bom dia chefe. – disse Hokori.
- Eu já falei com você, Hokori. – responde o chefe.
  A expressão que Hokori fizera era de uma dúvida perturbadora. Ele não se lembrara de ouvir o chefe falar com ele.
- Não chefe, não falou.
- Falei Hokori; falei ontem, antes de ontem. Falei com você todo esse tempo. Você está sempre na minha cola, sempre à minha sombra.
- Sim chefe, mas é que hoje é um dia especial. Hoje eu poderei me tornar um Xogum, quero sua sorte.
  O chefe olha Hokori dos pés à cabeça. Afaga sua delicada e volumosa barba branca, enquanto analisa com seus olhos cansados o grande homem que está à sua frente.
- Então tens minha sorte, Hokori. – diz o chefe, abrindo um sorriso simpático.
  
  Na hora do almoço, Hokori não polpa os outros companheiros:
- O chefe olhou pra mim essa manhã. Me desejou sorte; acho que eu serei seu eleito!
- Mas ele disse isso a todos! – disse um dos companheiros.
- Não como disse para mim. Eu sei, só eu sei, vocês não estavam lá. Ele me olhou diferente, como se sentisse isso.
- Mesmo que ele queira você, ainda haverá o torneiro. Só quem chegar na final do torneio pode ser eleito como Xogum, são as regras. – continuou outro companheiro.
- Ah, mas vocês sabem não é? Eu sou melhor do que todos aqui, sou o que tem a melhor chance. Claro que vou ganhar, está escrito. – respondeu Hokori, com um olhar orgulhoso.
  
  Ao entardecer, os criados já haviam terminado de abrir a clareira na montanha Nantai; uma clareira grande o suficiente para a realização da competição. Também foi montado um palanque, para o chefe, o general, os secretários e mais alguns pequenos lordes. Do outro lado havia o local de preparação para os guerreiros-samurai praticarem e se aquecerem. Todos vestidos com armaduras revestidas com madeira serrada e espadas do mesmo material.
  Hokori praticava sozinho, golpeando o ar com sua pesada espada de madeira. Ninguém ficava com ele ali; era de conhecimento geral que, quando Hokori empunhava uma espada – seja ela qual for – sua arrogância crescia mais que o Sol. Qualquer erro amistoso do adversário era suficiente para Hokori cair em cima com críticas duras, além do rapaz querer sempre ensinar – ‘da maneira correta’, como ele dizia – os outros. Era insuportável o momento em que ele vencia: ele ria alto e humilhava os outros, dizendo que não serviam pra ser guerreiros, que era melhor ser lenhador. No fim, todos sabiam que aquele torneio ia ser trágico para quem quer que lute contra Hokori. Mas ninguém podia mais desistir, chegara a hora.
  
  O som da trombeta soa forte, o suficiente pra fazer as aves do local levantarem voo. O arauto anuncia a chegada da comitiva do chefe.
  Rapidamente todos se organizam em fila militar, guardando suas espadas e arrumando as últimas coisas. O chefe cumprimenta calmamente os criados no palanque e se dirige até a bancada, onde começa seu discurso:
- Hoje é um dia histórico para o Japão, meus amigos. O dia de hoje será lembrado para sempre como o dia em que escolhemos o novo Xogum! – uma avalanche de palmas começa, tendo que ser controlada com fortes assovios do general; só depois o chefe continua. – Eu sei que vocês sabem da nossa situação, mas prefiro reafirmar nossa causa, para que nosso objetivo seja ainda mais nobre. O atual Xogum é uma farsa! O estado o elegeu, mas o homem é um completo bandido, que só governa para si e para os próximos dele. Se assim continuar, o Japão entrará em ruína. Precisamos dar um golpe de estado, e precisamos agora! Precisamos de alguém para liderar esta bela nação para o rumo correto. Precisamos de um novo Xogum, e agora ele será eleito, e será lembrado como herói da nação!
  Todos aplaudem. A trombeta soa mais uma vez e os preparativos para o início do torneio começam. Uma bandeira é levantada, nela há os nomes de todos os competidores – ao todo trinta e dois -, no meio deles está o nome de Hokori.
 
  Quando a trombeta soa mais uma vez, os primeiros competidores sobem na arena montada, com suas espadas e armaduras de madeira. Eles se cumprimentam e então o embate começa. Golpes de espada pra lá e pra cá; suor e gritos de golpes se misturam, numa dança semi-coreografada de luta. Em um certo momento, um deles avança e golpeia certeiramente o adversário. Ele cai, a luta acaba.
  Dupla a dupla eles sobem na arena para o duelo; é visivelmente duro ter de lutar naquele sol quente da tarde, mas os guerreiros aguentam firme. As lutas são observadas de perto pelo general e o chefe – e também por Hokori, prestando atenção em cada movimento de um possível adversário futuro.
  A vez de Hokori finalmente chega. Ele sobe na arena e cumprimenta o adversário. O adversário era jovem e estava claramente com medo do desafio, mas sabia que não podia recuar. Quando a luta começa, Hokori deixa que seu adversário se aproxime – e quando ele tenta atacar, Hokori apenas se esquiva, numa clara demonstração de brincadeira. Todos percebem que Hokori subestima o adversário. Em um momento de distração do jovem, Hokori o golpeia tão forte que ele quase desmaia. Não satisfeito, Hokori ainda arranca a espada de madeira do jovem e a quebra ao meio no próprio joelho. Ninguém aplaudiu, apenas observaram Hokori sair da arena com o queixo para o alto.
  Na hora do descanso, o general vem até Hokori:
- Rapaz, posso falar com você? – disse o general.
- Mas é claro, será uma honra pra mim. – responde Hokori.
  O general se aproxima de Hokori e lhe toca os ombros com ambas as mãos, e diz:
- Rapaz, se quer se tornar um Xogum de verdade, terá que abrir mão dessas brincadeiras de mau gosto. Está na hora de amadurecer, você entende? Não quero que faça mais isso, para seu próprio bem.
  Então ele se vira e sai, deixando Hokori sozinho, pensando consigo. Aquilo o incomodara; Hokori não gostava de receber conselhos, não gostava que os outros lhe desse ordens, mas se aquilo era preciso para alcançar o precioso sonho de ser um Xogum, então aquilo seria feito. Hokori apenas se senta em um banco e observa as lutas, esperando sua vez.
  
  As lutas continuam intensamente, num rodízio de calor e hematomas. Para o bem de todos, Hokori não comete mais nenhuma brincadeira – e sai vitorioso em todas as lutas que lutou, sem sequer sofrer um arranhão. Era claramente o favorito. Ele e um outro rapaz, chamado Saito. Ambos venceram todas as lutas que lutaram, iriam enfrentar um ao outro na final.
  E a final chega, com um clima tenso; alguns arriscavam torcer para Saito, embora todos sabiam que Hokori iria ganhar.
  Os dois sobem na arena, ambos se cumprimentam e preparam suas espadas de madeira. Hokori já conhecia Saito; em algum momento do passado ambos lutaram lado a lado; agora eram rivais, iriam disputar o título de Xogum.
  Saito estava nitidamente cansado, com hematomas nas pernas e no braço, não tinha a menor chance.
  
  A luta começa bem rápida; ambos trocando golpes com a espada, fazendo  o som da madeira ecoar entre a multidão que assistia calada. Dessa vez Hokori teve dificuldades; mesmo cansado, Saito ainda mantinha a perseverança de ganhar o torneio, ele não deixava nenhuma abertura para Hokori. Mas Hokori também não tinha intenção alguma de perder. Investia com tudo pra cima de Saito, sem pena alguma.
  Em um momento espetacular, Hokori recebe um golpe no braço, que faz com que ele caia de joelhos no chão. A multidão se surpreende com o ocorrido, mas Saito, ao invés de finalizar o adversário, o convida a se levantar novamente, para que a luta seja justa.
  Mas tudo não passava de uma artimanha de Hokori. Ele havia se deixado golpear, apenas para, no momento em que estivesse de joelhos, bater com a espada na perna de Saito. O golpe foi tão surpreendente que Saito correu para trás, mancando, mas ainda assim se mantinha na luta. Hokori se levanta e elogia a energia do rival, e ambos continuam a luta.
  Não por muito tempo, no entanto. Por causa do cansaço, Saito acaba se descuidando e Hokori o golpeia. Saito cai no chão, entregando a vitória para o rival.
  
  Hokori, numa demonstração jamais vista de companheirismo, ajuda Saito a se levantar; ambos se viram para o chefe, esperando suas palavras.
  O chefe se levanta, sem tirar os olhos dos dois, caminha até o palanque e anuncia: “Temos um novo Xogum!”, e aponta para Saito.
  Todos ficam surpresos com a decisão do chefe; ninguém esperava que Saito iria ser escolhido, afinal, quem ganhou a luta fora Hokori.
  
  Hokori, ainda chocado pela decisão do chefe, o questiona:
- Mas chefe, eu que ganhei.
- Sim Hokori, mas escolhi Saito.
- Mas por quê? Foi por ter dado aquele golpe nas pernas de Saito?
- Isso não importa, Saito foi escolhido, ele é o novo Xogum.
- NÃO, EU EXIJO SABER! – fala Hokori, agora gritando.
  
  O chefe para os olhos calmos em Hokori, o observa atentamente. Se aproxima de Hokori e diz bem baixo que não falaria ali, pois não seria sensato. Mas ao virar de costas, Hokori grita novamente, dizendo que não se importava, querendo apenas saber. O chefe para, olha para o general – e este faz um gesto de concordar com a cabeça – e se vira novamente para Hokori:
- Mesmo que tenha ganhado com toda a honra do mundo, eu não te escolheria. Escolheria qualquer outro, menos você. Pois você é orgulhoso demais, Hokori. – e saiu, junto com todos, deixando Hokori sozinho.

Ato 2 – Sol da Meia-Noite


  O anoitecer veio caindo mais triste do que nunca para Hokori; as estrelas olhavam para ele, ali, sozinho, o único ainda restante de pé na arena já vazia. Hokori ficou parado, enquanto todos foram embora. Alguns olharam pra ele, fizeram expressão de pesar; enquanto outros olharam rigorosos, com um olhar de negação, expressando um “você mereceu, Hokori!”.
  E talvez Hokori tenha merecido mesmo. Talvez ele não seja tão bom quanto julgava ser, talvez ainda precisasse aprender coisas para ser um bom líder. A verdade é que Hokori teve seu karma, naquele dia, naquele momento; consequência de anos de desprezo pelo próximo, consequência de ser uma pessoa muitas vezes autoritária.
  
  “Mas como proceder?” Pensava Hokori. Os outros não eram iguais a ele, os outros não sabiam o que ele sabia. Desde que nascera, Hokori sabia de seu destino. Um velho mago dissera ao seu pai, no dia do seu nascimento: “Esse garoto, tem o destino grande, será importante. As estrelas disseram, as estrelas sabem.” E agora, as estrelas estão vendo ele, sozinho, sofrendo com aquela humilhação.
  O líder não sabia, nem o general. Era o destino dele ser Xogum, não de Saito. Saito era só um sujeitinho que teve um pouco de sorte; Hokori não, Hokori treinou muito para aquilo – ele derrotou dezenas, centenas, pra chegar naquele momento e... perder. Como Hokori poderia alcançar a grandeza de sua vida, o ponto alto de sua existência, se perder ali, e não se tornar o grandioso Xogum? Ele não poderia... O mago estava certo, ele estava destinado. Nem o líder, nem ninguém poderiam impedir seu glorioso destino. Eles veriam quem era Hokori, eles veriam o seu verdadeiro potencial.
  Então Hokori saiu da arena. Meio cansado, agora que o sangue esfriara, mas ainda forte pra caminhar até sua cabana.
  
  No caminho, se depara com os amigos samurais. Quase todos viravam o rosto, quase todos evitam ver sua vergonha; e os poucos que o olhavam soltavam risinhos abafados, desafiando Hokori, mas ainda temendo sua pessoa. Enquanto isso, Hokori caminha com a cabeça erguida, ignorando os companheiros. Ele passa direto pela cabana do chefe, se dirige para a sua própria cabana. Lá, ele olha suas pequenas posses: sua katana, originária de seu pai; suas roupas, costuradas por sua mãe; um odre de vinho, dado por um grande amigo; e seu colar, dado pelo Mago no dia do seu nascimento – segundo ele, era um raio de sol em forma terrena.
  Ele reúne seus itens e sai da cabana; pega seu cavalo, dá uma última olhada para o acampamento, e parte, na escuridão da noite.
  Ele cavalga sem parar entre as árvores da densa floresta envolta da montanha Nantai. Hokori não conhecia a região, mas os olhos atentos do seu cavalo conhecia, de modo que ele poderia cavalgar na noite – acompanhado pelo doce brilho da lua cheia.
  Então ele cavalga, cavalga e cavalga. Desbrava a floresta, pastos, rios, colinas... Ele cavalga sem parar, com toda a velocidade. Junto de si, no alto, um corvo voa à sua frente, como uma bússola indicando o caminho. Hokori tinha certeza pra onde ia, ele não ia parar, não ia desistir. Hokori sabia como fazer pra se mostrar um líder – e agora não ia voltar atrás.
  
  Finalmente ele vê, no horizonte escuro da noite, uma fortaleza. Uma trombeta vem de lá, avisando da chegada de um desconhecido. Hokori repousa seu cavalo em frente ao grande portão de madeira; do alto um vigia grita com uma voz imperativa:
- Quem vem aí? Amigo? Inimigo? Se apresente!
  Hokori desce de seu cavalo, coloca os braços ao alto e avisa que veio em paz. Em minutos o portão se abre, revelando samurais armados com katanas e besteiros, todos apontados para ele. Eles pegam seu cavalo pelas rédeas e guiam Hokori para dentro da fortaleza. Hokori não vê mais o corvo.
  Uma vez lá dentro, Hokori é interrogado sobre sua visita inesperada no meio da noite. De forma confiante, Hokori avisa que tem uma mensagem reveladora para o Xogum, de forma que só pode ser transmitida diretamente para ele. Os samurais se entreolham desconfiados; por precaução, amarram as mãos de Hokori para trás, e confiscam sua katana, mas mantendo os outros pertences com ele.
  
  Hokori é levado à presença do grande Xogum, líder militar de todo o Japão. Ele entra em uma casa grande, tira suas sandálias e – ainda acompanhado pelos samurais – é direcionado até a sala de chá. Quando a porta é aberta, ele vê, o imponente e poderoso Xogum; homem grande, vestindo uma armadura negra como a noite, mostrando um bigode tão grosso quanto seus músculos. O homem – nos seus quase dois metros de altura – se ergue de seu pequeno assento e cumprimenta Hokori de forma majestosa. Hokori, por sua vez, fica lisonjeado com tamanha presença e autoridade do homem. Depois das conversas preliminares do seu destino ali, Hokori revela seu objetivo:
- Vim ao seu encontro, grande líder, para lhe contar uma ameaça provável. – revela Hokori, com um olhar determinado – Eu fazia parte de um grupo rebelde que pretende lhe tirar o trono de Xogum, e assumir os destinos do Japão.
  O líder olha Hokori atentamente; ele faz deslizar seus dedos grande no bigode, de forma a parecer que está refletindo sobre o assunto. Por fim, ele solta sua voz:
- E o que trouxe você, um samurai, a trair seu grupo. Os samurais tem sua honra; a traição para eles é, em geral, a morte. – disse o Xogum.
- Acontece, meu senhor, que minha honra e meu dever se encontram com o Japão; e julgo que, pelo que vi, o melhor para a nossa ilha é que ela se mantenha sob seu domínio. O líder que eles tem não é capaz de liderar, meu senhor. – disse Hokori, numa expressão de respeito.
  
  O líder Xogum fecha seus olhos enquanto escuta as palavras de Hokori. Ele caminha até a mesa, serve a si mesmo o chá, toma lentamente um gole, e por fim, se vira para Hokori novamente.
- Você tem coragem, rapaz. E espero que você esteja certo em sua escolha. Quando eles virão?
- Na lua nova, senhor, quando tudo estiver escuro. – respondeu Hokori.
- Certamente. Nós vamos preparar um contra-ataque; mas até lá, vai demorar. Venha, junte-se a nós, vamos lhe apresentar para os outros. Se tudo der certo você será visto como um herói, rapaz, um herói que salvou o Japão.
  Os olhos de Hokori brilharam. Finalmente o reconhecimento lhe havia batido na porta.
  Hokori passou seus dias no interior da fortaleza, dividindo espaço com os samurais do Xogum. Ele havia sido muito bem aceito, mas ainda era frequentemente testado pelos outros
  Um dos que mais lhe observava era o secretário geral do Xogum; parecia, para Hakori, que ele o admirava, talvez pelo seu estilo único e impecável de lutar. Mesmo ali, mesmo entre os melhores samurais do Japão, Hokori continuava sendo excelente com a katana, sem jamais pestanejar. Rapidamente sua fama cresceu entre os samurais; rapidamente ele se tornou o favorito do Xogum também.
  Os dias foram correndo como as águas de um rio, logo era lua nova. O Xogum e os samurais se prepararam para o embate. Afiaram as katanas, prepararam os besteiros, aprimoraram as defesas... Tudo estava pronto para a invasão dos rebeldes, mas ainda havia dúvidas sobre a veracidade do ataque.
- Se essa história for uma mentira, Hokori, você será executado na frente de todos! – dizia os samurais.
  Mas Hokori não se preocupava, sabia que era verdade, sabia dos planos do chefe de seu antigo bando. Na pior das hipóteses, eles poderiam desistir, mas era improvável; eles queriam tomar o poder para si urgentemente, não tinha como esperar mais.
  
  E no fim, Hokori estava certo. Na noite fria, tão fria que nem as raposas ousaram sair de suas tocas pra caçar, os rebeldes vieram. Eles vieram sorrateiramente, como uma cobra traiçoeira. Era impossível de os ver na escuridão da noite sem lua, mas os samurais da fortaleza já haviam mandado batedores – eles sabiam da chegada.
  Quando os inimigos chegaram à uma certa distância, os besteiros da fortaleza se ergueram sob suas torres e dispararam flechas incendiárias nos inimigos, de modo que clareava a noite escura, como pequenos cometas flamejantes. O susto dos inimigos, que pensavam estar com o efeito surpresa, foi tamanho; como eram samurais também, não ousaram fugir – a única alternativa foi partir para o ataque total.
  E assim foi. Os inimigos rebeldes correndo para a fortaleza, enquanto os da fortaleza abriam suas portas para lutar de igual para igual. O momento certeiro quando os dois exércitos se chocaram foi magnífico; sangue escorreu para ambos os lados, gritos, golpes, cavalos relinchando. A batalha entre os primeiros que seguiram foi sangrenta, mas foi só o começo. Logo em seguida, o segundo grupo, de ambos os lados vinha. Do lado dos rebeldes, vinha Saito, vestido de Xogum, com o General e o chefe, cada um ao seu lado do cavalo; do grupo da fortaleza, vinha o Xogum atual, com sua armadura negra reluzente; ao seu lado vinha o secretário, e do outro, o próprio Hokori.
  
  Os dois grupos se olharam por alguns segundos, e Hokori pode ver o olhar de desaprovação do seu antigo líder. Mas isso não importava agora, ele escolhera um lado, era a guerra.
  O Xogum negro levantou sua katana para o alto e mandou que seus samurais avançassem; enquanto o falso Xogum, Saito, fazia o mesmo. Ambos os exércitos se chocaram novamente, fazendo uma nova e grande batalha, enquanto seus líderes observavam de longe, esperando a hora certa chegar.
  Hokori, impaciente, queria ir à luta de uma vez, mas o Xogum sempre dizia que “os peões iam na frente” e que ele não era um peão. Hokori ficara satisfeito em ouvir tais palavras; tão feliz, que resolveu presentear ali mesmo o seu querido Xogum:
- Senhor, quero lhe agradecer por ter a chance de lutar ao seu lado nessa batalha. – disse Hokori.
- Não há o que agradecer, Hokori. Você foi muito útil para nós, além de ser muito bom com a katana e sábio em escolher o lado correto. Um dia você poderá se tornar um Xogum também, se assim o destino quiser. – disse o Xogum, deixando Hokori orgulhoso.
- Senhor, quero lhe dar isso, para lhe acender a chama da guerra, e lhe dar a vitória. – e Hokori tirou do seu cinto o seu odre de vinho, e deu ao líder. – Foi um presente de um amigo para mim, é tudo que tenho como agradecimento.
  
  O Xogum sorriu, agradeceu o presente, tirou a rolha e tomou um longo gole. Tirou sua katana da bainha, a estendeu para o alto, e partiu, para o meio da batalha. Os outros, incluindo Hokori, o seguiram. Do outro lado do campo de batalha, Saito vê o Xogum indo para a guerra, e não podendo ficar para trás, faz o mesmo. Ele desejaria matar Hokori pessoalmente, por causa da traição; mas era esperado que ele lutasse contra o outro Xogum, então o general ficou encarregado de lutar contra Hokori.
  E assim foi, no meio de corpos ensanguentados e mutilados, os dois grupos se encontram pela primeira vez. Hokori retira sua katana da bainha e vai para cima de Saito, sabendo que com ele terá a vitória fácil, mas o cavalo do seu antigo general se põe entre os dois:
- Eu sou o seu adversário, Hokori. – grita o general. – Você vai pagar pelo que fez!
  E parte pra cima dele. Os dois cruzam as katanas muitas e muitas vezes. O general era sem dúvida muito habilidoso, mas nada comparado a Hokori. A luta entre os dois não dura muito: o general perfura o cavalo de Hokori, fazendo-o cair, mas Hokori corta as pernas do cavalo do general também, os deixando de igual pra igual; a luta se segue no chão, no meio de várias outras lutas, no meio do caos de morte, gritos, explosões e fogo. Hokori vê uma brecha e investe nela; acerta no coração do general, fazendo sua boca transbordar de sangue. O general solta as últimas palavras de ódio: “Traidor”. E morre.
  
  Hokori procura por Saito, mas o encontra morto no chão, no meio de outros corpos. Ao seu lado, está o próprio Xogum, também morto. Segundo o que os outros samurais disseram, os dois se mataram; um samurai aliado chegou a relatar que o Xogum lutava estranho, parecia estar fora de si. E Hokori sabia do motivo: o odre de vinho estava com certas substâncias que provocavam tonteira e sono. Hokori sabia que o Xogum morreria.
  Depois que seu antigo chefe foi pego e levado às masmorras, os samurais inimigos se renderam e a luta acabou. Houve uma tristeza profunda pela morte do Xogum. No dia seguinte, houve um enterro honroso para todos que morreram na batalha.
  O secretário sabia que o Japão não poderia ficar sem um Xogum, então logo tratou de ir à procura de alguém; não demorou muito para ele se lembrar de Hokori, e do desejo do antigo Xogum de que ele se tornasse um outro Xogum também. Hokori estava em seu quarto, quando o secretário chegou:
- Olá Hokori, espero que não tenha vindo em má hora.
- Não, não veio senhor. – respondeu Hokori.
- Acontece, Hokori, que um dos últimos desejos de nosso antigo líder, agora morto, era que você, por sua honra e habilidade, se tornasse o novo Xogum, a fim de liderar pelos próximos anos, até sua morte.
  
  Hokori fez o que pode para esconder sua felicidade. Com a expressão séria, ele se ajoelhou e agradeceu o pedido, falando que sim, que seria uma honra servir como Xogum. Mas o secretário disse que não seria possível agora:
- Acontece, Hokori, que para se tornar um Xogum, é preciso passar por um certo treinamento, e pela avaliação de alguém. – respondeu o secretário.
- Mas secretário... – respondeu Hokori. – Você viu, minhas habilidades são impecáveis, eu não preciso de treinamento algum.
- Mesmo assim, Hokori. Devemos seguir a tradição. E a tradição consta que você, como um pretendente a Xogum, deve passar pelo treinamento. Foi assim com o nosso falecido, será assim com você.
- E quem irá me treinar?
- Um antigo Xogum, que antecede o último; ele abdicou do posto, por causas nobres.
  Hokori soltou uma leve risada antes de continuar:
- E qual é a causa mais nobre, se não ser Xogum? – questionou Hokori.
- O homem em questão abandonou tudo para atingir a iluminação, Hokori. – respondeu o secretário. – Hoje ele é um Buda, e é com ele que irá treinar.


Ato 3 – Sol Nascente

  Na manhã seguinte, Hokori partiu com seus itens. Deixou pra trás a fortaleza; os outros samurais lhe desejaram sorte, esperando que ele volte como um Xogum feito. Montou em seu cavalo e partiu. O sol daquele dia estava agradável; a natureza em especial estava mais bela, tudo parecia em harmonia. Durante a cavalgada, Hokori pode ver o corvo que lhe acompanhara anteriormente; agora a criatura voava mais alto, parecia que o sol da manhã lhe dava mais força, mas energia; e parecia que o mesmo acontecia a Hokori: ele estava mais leve, com uma energia interior jamais sentida.
  O secretário lhe disse para cavalgar para o leste, que num momento ele encontraria o abrigo do Buda. Hokori foi. No caminho, cruzou com fazendas, pessoas plantando arroz, carroças sendo puxadas por bois... Hokori pensou na sua responsabilidade como o novo Xogum, de que teria que defender as pessoas dos inimigos. O seu antigo chefe lhe disse que ele não servia para Xogum, mas o Mago disse que era seu destino; e agora, Hokori sentia que estava cada vez mais próximo de realiza-lo.
  Depois de algumas horas cavalgando pela manhã serena, Hokori adentra uma pequena floresta. O corvo se camufla entre as copas das árvores, e se perde por lá. Hokori começa a ouvir o barulho de água, o ambiente ficando mais úmido e suave... Ele chegara em um córrego.

  Era um rio pequeno, mas seu cavalo não seria capaz de atravessar com facilidade. Então ele desmontou, pegou seu odre de vinho – agora vazio – e o encheu com a água, enquanto seu cavalo também bebia. A água estava fria e refrescante, fazendo com que Hokori a jogasse em sua nuca, para afastar o suor.
  Do outro lado do rio, ele avista um homem. O homem era calmo, com roupas humildes e completamente careca. Carregava consigo um balde e ia enchendo lentamente nas águas do rio, enquanto murmurava baixinho: “Cortar madeira... Pegar água... Cortar madeira...”
  Hokori observou o homem por alguns segundos, até perceber uma estranha semelhança. Então perguntou:
- Tu és o Buda que vive por aqui?
- Eu apenas sou. Se sou Buda, se sou homem, samurai ou Xogum, é uma definição tua, Hokori, e não minha.
  
  Naquele momento Hokori entendeu que o homem era o Buda que ele procurava. Se ajoelhou rapidamente ao chão, num gesto de respeito, falando:
- Vim à sua procura. O Xogum está morto, e é esperado de mim que seja o próximo. Me mandaram até você, para que me treine. Sou Hokori, um samurai.
- Eu sei quem és. – respondeu o Buda, olhando agora diretamente para Hokori, com um olhar calmo. – Me ajude aqui a carregar esta água, rapaz.
- E enquanto ao meu cavalo?
- Ele é muito pesado para você ou eu carregarmos.
- Não... Pergunto o que será dele. Ele não pode atravessar o rio.
- Hokori, você não pode viver esperando que os outros te sigam. Se seu cavalo não é capaz de te acompanhar, que venha só.
  Hokori entendeu o recado. Pegou suas coisas e atravessou o rio, com a água correndo em sua cintura. O corvo passou voando pelo rio, e foi seguindo Hokori e o Buda.
  
  Os dois não trocaram uma só palavra no caminho. Tudo que Hokori fez foi observar o ambiente: uma floresta que parecia um jardim bem cuidado, cheio de flores e árvores altas.
  Num momento eles encontram um lago, com uma cachoeira enorme. A água da cachoeira batia das pedras, jogando partículas de água no ar, que sob o contato com os raios de sol matinais, formava um belíssimo arco-íris.
- Chegamos, rapaz. – disse o Buda.
- É aqui que tu mora? – perguntou Hokori, mas sem responder, o Buda caminhou por um pequeno caminho, que ia até a cachoeira. Hokori o seguiu.

  A trilha era estreita, e passava por detrás das pedras, fazendo uma curva. Quando Hokori viu, ela passava por trás da cachoeira, onde tinha uma caverna.
  A caverna não era grande, mas havia ali poucas coisas, o suficiente para um homem só viver: uma fogueira de pedras, uma colcha pra dormir e alguns outros utensílios. Hokori se acomodou em um canto, enquanto o homem acendia a fogueira. Na parede da caverna, Hokori pode ver uma katana pregada; chegou a pensar em perguntar se ela ainda era usada, mas achou melhor não falar nada.
  
  O Buda se sentou envolta agora da fogueira acesa e olhou pra Hokori, fazendo um gesto para ele se aproximar. A assim Hokori fez.
- O que sabe sobre a natureza de um Buda? – perguntou o Buda.
- Nada senhor, eu sou Xintoísta desde o nascimento. – respondeu Hokori.
- E de qual deus és devoto?
- Amaterasu, senhor.
  O Buda sorriu. Molhou suas mãos no balde de água e esfregou no rosto. Depois disse:
- Se quer ser um Xogum, terá que entender o que é ser um Buda antes, e se possível, terá que ser um Buda, antes de ser um Xogum. Quer ser um Buda?
- Não.
- Entendo. O outro disse o mesmo.
- O outro?
- O outro Xogum, anterior a você.
  Hokori pensou um pouco, e depois disse:
- Qual a vantagem de ser um Buda antes?
- A vantagem? Simples: Você deixa de querer ser Xogum.
- Ora, e por que eu iria querer deixar de ser? Esse é meu destino, é o que eu nasci pra ser. – disse Hokori, agora irritado.
  O Buda sorriu, e continuou:
- Existe uma diferença entre ser e ter. Você quer ser Xogum ou ter o título de Xogum?
- Ser.
- Então terás que deixar de tentar, pois tentar é ter; você terá que deixar fluir, parar de tentar, pois parar de tentar é ser.
  Hokori não entendeu bem, e pediu uma outra explicação, e assim o Buda deu:
-  Um corvo não tentou ser um corvo, ele nasceu corvo, por isso ele é um corvo. Ele não tenta voar, ele voa, pois é essa sua natureza, é essa sua essência.
- Mas eu nasci um Xogum, o Mago disse. – respondeu Hokori.
- É? Então por que está tentando ainda?
  Hokori ficou pensativo. Observava o fogo à sua frente e refletia sobre as palavras do Buda. Por fim, disse:
- Então me treine. Quero ser um Xogum.
- Então assim faremos. – respondeu o Buda.

  Ao longo dos dias o Buda treinou Hokori como podia. Meditaram, praticaram yoga, contemplaram as estrelas, observaram o nascimento do sol...
  Hokori jamais havia sentido tamanha paz dentro de si. Parecia que ele estava no paraíso. A própria vontade de treinar com a katana lhe faltava; seu foco era no treinamento espiritual do Buda.
  Em certo dia, os dois foram visitar uma pequena aldeia pela região, onde o Buda iria falar palavras de sabedoria e realizar curas em doentes. Hokori o acompanhou de perto, observando sua natureza iluminada.
  Uma mulher muito bela se aproxima de Hokori, com um sorriso radiante. Hokori observa a jovem, seus cabelos volumosos, dourados, parecendo a juba de um leão. Ela pergunta quem ele era, e ele responde, orgulhoso de seu próprio nome. Ela sorri, colocando a mão na boca, de uma maneira delicada.

  Os dois ficam de frente um para o outro. Ela o observa, e ele observa ela. Ela toca sua mão levemente, e o atrai; ele vai. Dá uma última olhada para o Buda, que parece estar ocupado com um jovem menino doente.
  A moça o guia para trás de uma casa, onde ficam sozinhos. Ela, com todo charme, lhe beija. Seus lábios são quentes como o fogo, e o sabor é mel puro. Hokori não se lembrava de ter beijado uma mulher antes, e estranhou a sensação que teve entre suas pernas. Ela lhe tocou ali com carinho, enquanto lhe beijava.
  Hokori não sabia como reagir, apenas se deixava guiar. Tentou fechar os olhos, mas imagens oníricas vinham em sua mente: ele via a figura imponente de um Leão Branco, caminhando com agressividade em sua direção. Na visão, Hokori puxava sua katana para combater a fera, mas pra cada golpe agressivo que dava, mais poderoso o leão ficava; seu fim era certo.
  Ao longe, ainda na visão, via a mulher num monte, e ao seu lado uma leoa. A leoa era diferente, também era branca, também era imponente, mas esta estava calma, dócil, com seu rabo entre as pernas. Tão dócil que a mulher fez uma demonstração: abriu a boca da leoa, e esta não fez nada!
  Na distração, o combate com o Leão foi esquecido, e o leão avança pra cima de Hokori, o mordendo. No exato momento em que era mordido na visão, foi o exato momento em que sentiu uma corrente de prazer correndo seu corpo, e escorrendo pela sua parte íntima. Um mel branco – da mesma cor que o leão – foi derramado, e a mulher sumira.

  Hokori se viu nu. Vestiu suas roupas e foi ao encontro do Buda. No retorno para a caverna, contou para o iluminado de sua aventura, e o sábio disse:
- Aquilo fora um teste para ti, Hokori, na qual tu falhara.
- E por que? – perguntou Hokori.
- Os verdadeiros heróis não são aqueles que matam seus leões, mas sim, aqueles que os domam. Tu deveria ter deixado fluir, da mesma forma que a mulher. Combater é dar energia para o combatente. Tu, como um samurai, deveria saber disso.
  
  E Hokori sabia. Mas a prática era diferente da teoria – e ele adorava combates. Jamais recusara um. Como poderia ele se abster, enquanto o adversário lhe atacava? Hokori não conseguia.
- Mas terá que conseguir... – respondeu o Buda, como quem lê os pensamentos. – Se quiser se tornar um Xogum, ou um Buda, terá que ser assim. A verdadeira força serve para conter, e não para agredir. E não é conter de impedir. Eu posso bloquear o raio do sol, mas não posso apagar o sol. É diferente. Aprenda a usar a força para conter, e será o senhor de si mesmo – e consequentemente um Xogum respeitável.
  Hokori fez cara feia. Estava cansado das palavras do Buda; apertou o passo, deixando o homem para trás.
  Porém, derramar o líquido branco lhe deixou completamente exausto para treinar, ou fazer qualquer coisa. Passou o resto dos dias seguintes se deixando banhar pelos raios matinais, percebendo que eles faziam sua energia ser recuperada. Aos poucos, foi melhorando, e aos poucos foi percebendo a natureza calma dentro de si.
  Quando começou a sentir um calor que vinha da base da sua coluna até a região do seu umbigo, sentiu que era a hora. O Buda falou que para atingir a iluminação era necessário mais do que isso, mas por agora era o suficiente. Hokori estava pronto para sua iniciação.

Ato 4 – Sol do Meio-Dia

  O dia marcado para a sua iniciação calhou de cair no seu aniversário de trinta e seis anos. Um dia mais que especial para ele. Lembrando-se do velho Mago, Hokori colocou o colar que ganhara – que supostamente era um raio de sol em forma terrena.
  Saiu da caverna, encontrando o Buda do lado de fora, arrumando os preparativos para a iniciação
  
  A coisa toda iria acontecer numa pedra, que ficava no centro exato da cachoeira, onde Hokori teria que meditar até se purificar por completo. Só assim seria capaz de ser um Xogum. Mas havia as dificuldades: O Buda o alertara que aspectos de sua própria mente tentaria sabotar toda a operação, e que ele deveria ficar alerta, com a consciência mais elevada possível, assim como o sol do meio-dia.
  Hokori entendeu, ou pelo menos fingiu que entendeu. Entrou na água e foi até a pedra, se sentou nela em posição de lótus e começou a tentar meditar. O sol forte em sua cabeça lhe fazia suar, mas a água fresca da cachoeira aliviava a tensão.
  
  Aos poucos foi conseguindo entender as vibrações sutis que o silêncio dentro de si fazia, e foi percebendo a natureza vibracional que o seu ser emanava. Ele era como o sol, brilhante, belo, harmonioso, que emanava energia para todas as direções.
  Hokori sentiu seu momento de glória, mas aos poucos isso foi passando. Conforme sua experiência mística ia se intensificando, mais ele percebia que não era o mais brilhante. Havia seres mais brilhantes do que ele, cuja percepção estava mais acima, muito mais do que ele imaginava. O próprio Buda era um deles, e mais: os animais, as plantas, toda a floresta e até a cachoeira emanavam um certo brilho, tanto quanto ele, ou até maior. Hokori começou a se sentir frustrado, e ignorando o alerta do Buda, começou a lutar contra os outros brilhos.
  
  Foi aí que apareceu uma mulher. Hokori achou que era a mesma de antes, mas não era – esse ele conhecia bem: Era a deusa Amaterasu, de quem era devoto. Em sua visão, ela aparecia com um vestido negro, com chamas sombrias em sua aura. Ela vinha com um olhar maléfico, porém amigável – numa mistura que ele não sabia explicar.
- Sabes quem sou, meu pobre rapaz? – perguntou a Deusa.
- Sei... Tu és Amaterasu, de quem sou devoto. – respondeu Hokori.
-  Sim. Em outras terras tenho outros nomes. Sou chamada de Kali, Lilith ou Rosa Caveira. Nomes não importam, nomes são coisas materiais. Sabe o motivo de minha presença aqui, meu jovem?
- Não senhora.
- Vim te destruir, de devorar, te destroçar.
  Hokori ficou assustado, pensou que morreria ali, pensou que seu destino de ser Xogum jamais seria conquistado. Tentou se levantar, mais seu corpo estava paralisado, num estranho estado de catalepsia. Lutou contra aquilo, enquanto a Deusa falava:
- Não queres minha ajuda?
- Não, saia daqui, não quero morrer. Tenho um destino, serei um Xogum, não importa o quê!

  E então, a paralisia passou, e ele se viu sentado na pedra, em lótus novamente. Olhou para a direção onde estava a Deusa, mas nada viu; porém, havia algo, um ponto preto no céu, que descia rápido. Hokori não sabia o que era, mas tão rápido quanto veio, tão rápido lhe atacou, e ele não conseguiu desviar.
  Era um corvo preto, talvez o mesmo que lhe seguira aquele tempo todo. O corvo desceu com toda a velocidade pra cima dele, e com uma das patas, espetou seu olho direito – e de relance, Hokori percebeu que a criatura o perfurara com uma terceira pata, no meio das outras duas.
  O corvo pegou seu olho com força, envolvendo-o por completo com a terceira pata, e o arrancou fora, fazendo jorrar o sangue para fora, deixando Hokori gritando de dor.
  
  Enquanto Hokori mergulhava na água da cachoeira, o corvo voava para longe com seu olho. Submerso, e com uma terrível dor, Hokori tenta se controlar, nada até a superfície e sai da água. Coloca a mão no buraco do olho, numa tentativa quase inútil de impedir o sangramento, e logo depois, procura o Buda. Não o vê.
  Ele vai com dificuldade até a caverna, e percebe que o Buda não está lá. Com raiva, pega sua katana, desembainha e sai. Ao sair, vê o Buda, comendo amoras, com sua katana embainhada em sua cintura.
- Maldito seja, velho! Tu me traiu, me enganou. Mandou o corvo e a mulher me sabotarem, perdi um olho. Exijo que me torne um Xogum, agora! – gritou Hokori do alto das pedras, ao lado da cachoeira, apontando sua katana ferozmente para o Buda.
- Não posso meu jovem. – disse calmamente o Buda, enquanto comia as frutinhas. – Tu não passou pela iniciação. Não destruiu a si mesmo – como uma fênix – e se refez. Somente assim estaria pronto. Somente quando é capaz de morrer, destruindo seu Ego, é que se pode, realmente, se tornar algo de verdade. Não posso te tornar um Xogum, pois tu ainda és um homem orgulhoso.
  
  Completamente enfurecido, Hokori desceu das pedras, indo em direção ao Buda, que se mantinha inalterado.
  Hokori se aproxima, mantendo uma distância de quatro metros do iluminado, dizendo que o mataria.
- Irá me matar mesmo ou está dizendo isso apenas porque seu coração está cheio de ódio? – disse o Buda.
- Irei... – respondeu Hokori, enfurecido. – Mesmo sem um olho, sou muito bem capaz de retalhar você ao meio. Agora vamos, ou você me torna um Xogum, ou terá que sacar sua katana, pois eu mesmo irei me declarar um.
- Qualquer um pode se declarar qualquer coisa, mas isso não muda a sua natureza. Ninguém pode ser maior do que já é.
  Aquilo só irritou mais Hokori, que partiu pra cima do Buda aos berros de “vou te matar”, mas errando todos os golpes, pois o iluminado se esquivava com relativa facilidade - ainda comendo as frutinhas.
 
  Mas mesmo sem um olho, Hokori ainda era excelente com a katana, o que obrigou o Buda a puxar a sua, mas sem tirar ela da bainha, apenas bloqueava os golpes mais ofensivos do rapaz.
  O duelo se manteve no mesmo ritmo: Hokori batia, o Buda se esquivava ou defendia. Em certa altura, Hokori se viu ensopado de suor. O sol do meio-dia lhe deixara exausto, fora o buraco de seu olho, que não parava de doer e sangrar.
  Mesmo dando tudo de si, Hokori não conseguia ferir o Buda – e logo percebeu que o homem era impassível para suas ameaças, chegando até a rir, se divertindo com aquilo tudo. Hokori não aguentava mais, e investia cada vez mais forte contra o homem.
  Num certo momento, sua katana foi mais rápida, e rasgou a coxa esquerda do Buda. Satisfeito, olhou para o rosto do homem, mas ele se mantinha calmo.
- Tu mantém o mesmo comportamento que manteve com o leão. Assim jamais vai vencer. – disse o Buda.
- Estou vencendo. – gritou Hokori.
- Vencendo de mim, mas e vencendo de si mesmo?
  
  Hokori o ignorou. Interpretou aquilo como uma tentativa de distraí-lo. Talvez o homem nem sequer era um Buda, era só um farsante maluco que vivia sozinho na floresta. No novo mundo que Hokori iria criar como Xogum, esse tipinho de homem não poderia existir.
  Isso lhe deu mais gás, e foi com mais fúria para cima do Buda, conseguindo ultrapassar as suas defesas, fazendo pequenos cortes aqui e ali no corpo do iluminado – que parecia não mostrar reação.
- Tu ataca um homem que não lhe ataca. Onde está a honra nisso, rapaz? Não aprendeu nada na escola de samurais? – disse o Buda, sorrindo.
- Não importa, ninguém tá vendo. Do que vale a honra se não pode ser reconhecida por outros? – respondeu Hokori.
- Eu estou vendo. – respondeu o Buda.
- Você é um homem morto!
- Ok, então você está vendo. Sua consciência vai conseguir viver com essa desonra?
  Hokori já estava xingando o homem por dentro, queria despedaça-lo, retalha-lo, corta-lo em mil pedaços e espalhar cada um por todos os cantos do Japão. Depois iria atrás daquele corvo e pegaria seu olho novamente. E depois se tornaria Xogum, e comandaria seu exército. E depois...
  
  Seus pensamentos foram interrompidos. O Buda reagiu. Num movimento inesperado, e muito rápido – que seu único olho restante não foi capaz de interpretar – o Buda segurou sua katana pela parte da lâmina embainhada, e com o cabo, deu um golpe muito forte no baço de Hokori, na região conhecida como plexo solar.
  Aquilo fez com que Hokori tivesse seu estômago revirado, e tomo seu almoço veio à tona, subindo pelo seu corpo, e saindo pela sua boca, em forma de vômito. Junto com ele, uma visão: Viu uma torre vermelha, com o sol flamejante atrás de si. O sol despejou um raio vermelho, que acertou a ponta da torre, a destruindo da ponta até a base, fazendo seus blocos caírem para todos os lados. Hokori se viu pulando da torre no último segundo, caindo feio no chão.
  Junto com a queda, viu todos os seus sonhos, todas as suas lembranças, tudo que ele era cair junto. Viu o sonho de se tornar Xogum se desfazer diante do seu único olho. Hokori não era mais nada. Era poeira. Tudo o que sobrou da torre.
  
  O Buda o ajuda a se levantar, e o encosta em uma árvore. Hokori se sente confuso, mas ao mesmo tempo, diferente. Ele olhava as coisas, e via tons mais reais. Era como se ele estivesse sonhando esse tempo todo, e só agora tivesse acordado.
- Por que meu olho dói? – perguntou Hokori.
- Porque você nunca o usou. – respondeu o Buda. – Eu usei sua raiva interior pra quebrar a fortaleza que era o seu ego. Me desculpe, mas foi a única maneira. Você não é um iluminado agora, mas é alguém diferente. Venha, levante-se.
  Hokori se levantou com a ajuda do Buda. Tudo parecia de fato diferente. E agora, se sentia estranhamente completo. Parecia que a busca tinha terminado, parecia que, projetando sua energia para fora de si – para o objetivo de ser o Xogum – era perder energia, e que na verdade o correto era projetar a energia para dentro de si, pois assim poderia preencher o vazio, e fluir. E quando se fluía, se era, e quando se era, se podia fazer qualquer coisa.
- Dance por dançar, lute por lutar, medite por meditar. Não tente chegar num objetivo, apenas faça por fazer, e a coisa por si só virá. – disse o Buda. – O Ego quer ter, mas se esquece de ser. Ter e ser são duas coisas diferentes, mas que o Ego confunde. Há uma diferença entre ter dinheiro e ser rico, entre ter luz e ser iluminado.

  Agora Hokori havia entendido. Era simples, simples demais. Pegou sua katana no chão, tirou pra fora seu colar de ‘raio de sol’ e o cortou. Arremessou para a água da cachoeira, e ali ficou. Olhou para o Buda e sorriu.
- Não preciso dizer que tu és um Xogum agora, não é? – perguntou o Buda.
- Não. Eu sempre fui, e nunca fui. Assim como tu é um Buda, e nunca foi um Buda. – respondeu Hokori.
- O ser é uma unidade. Quando tu viu a energia das plantas, dos animais e dos outros seres maiores que a tua, não significa que tu era inferior, pois tu é parte dessa energia, apenas se manifestando dessa forma. Tu és um, e não existe maior ou menor. Tudo é.

  Hokori ficou em silêncio, absorvendo as palavras do iluminado, enquanto ambos olhavam para a cachoeira.
- Quando tu se tornar um Buda, será um com tudo – disse o Buda – E assim, eu serei tu e tu serás eu. E seremos dois aspectos de uma mesma coisa, assim como sempre somos. Este é o mistério da vida. Somos poeira das estrelas, que veio do nada, e formou tudo.
- Então, quando me tornar um Buda, serei um contigo, serei o Buda, o primeiro, e não haverá nenhum outro Buda que não seja eu. – respondeu Hokori.
- Exato. Então assim, quando se tornar um Buda, e nos encontrar, nós iremos lutar sério pra ver quem é Buda. Se é eu, se é tu. Entende?
- Entendo. Você fala em parábolas, mas entendo sim. Quando esse dia chegar, eu lhe matarei. Não por eu ser bom com espada, ou ser o melhor, mas apenas por eu ser.
  Os dois se olharam, e os dois sorriram. E somente esse gesto foi o suficiente. Hokori partiu, sabendo quem era.


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